domingo, 29 de março de 2009

Arca do Tesouro

Uma criança sentada
no piso atapetado da sala
perde-se em seu mundo.

Encontra-se em seu mundo
de tanto procurar
tesouros enterrados
por piratas caolhos
com chapéus de três pontas.

Uma criança de três cores
brinca compenetrada
pintando seu rosto
com as cores do carnaval
que não chegou ainda
(que nunca foi embora).

Uma filho observa
o pai deitado no tapete
buscando tesouros,
cobrindo-se de ouros,
desfrutando sonhos
que não confessa.

Uma criança descobre
deitada no tapete
uma outra criança
que esqueceu de crescer.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Reconciliação

gosto quando minha criança vem brincar nisso que sou.
vem me ver com olhos de nuvens claras a reger canções em meus ouvidos.
bagunça meus cabelos minhas idéias minhas cores
fere a minha gravidade com sua leveza mansa
me atinge com seus arco-íris suas setas de venenos doces.
afasta minha febre, tece horizontes de sóis em meus olhos
embaralha meus caminhos, me perde os passos as horas os retratos a rigidez
me sopra flores no peito, constrói pontes invisíveis em meus pés. me cria asas.
me invade de vento, me convida, caminha em mim. me enche disso que ontem eu era.
me estende a mão, se reconcilia comigo, me faz toda estradas desejos primaveras.
pinta estrelas em minha face. faz crescer meus olhos para as cores do tempo.
brota em mim como flores. me mostrando que sou. inteira. ontem. hoje.
a criança de outrora.

terça-feira, 17 de março de 2009

Barquinho de papel

O lago, imenso, sereno, parecia um mundo.
Como aqueles mundos distantes dos telescópios e dos sonhos de astronautas. Quieto, misterioso, esperando pacientemente a visita de um explorador corajoso.
O menino olhava para o lago e viajava ali parado. Era melhor do que sonhar. De vez em quando, uma lufada mais forte da brisa encrespava as águas – um mundo adormecido que se lembrava de avisar: “estou vivo!” Ronco do dragão de são Jorge escondido em alguma cratera lunar a sacudir a superfície.
O pai do menino, a poucos metros, dormitava no banco do parque após ter lido o jornal.
O vento que mexia com as águas também atiçava as folhas do jornal. Um caleidoscópio em preto-e-branco de notícias alegres e tristes, mais tristes que alegres. Crianças de rua para quem as folhas do jornal são cobertor, pessimistas para quem as novas da política são o fim dos tempos, desempregados para quem as letras miúdas dos classificados gritam que não há vagas.
O menino já aprendeu a ler, mas, no caleidoscópio de papel, ainda prefere as imagens. Quadrinhos, futebol. Ou personalidades sérias nas quais um bigode desenhado a lápis cairia muito bem.
Mas o menino olhava para o lago. O lago mostrava seu rosto ao menino. No reflexo, os retratos do lago e do menino se misturavam.
Então, o vento. Sem força para arrepiar o menino, mas sacudindo sutilmente o lago. Os retratos na superfície d’água se desmancharam. E o menino se sentiu sozinho.
O mesmo vento, brincando de passar as folhas do jornal largado na relva, desvendou ao menino as páginas do miolo. A capa do segundo-caderno. Cores! Nosso menino não hesitou, também não pensou muito. Com a naturalidade das crianças, a folha do jornal estava em suas mãos. O destaque do dia era para um artista que vivia recluso numa ilha, mas isso não importava muito. Naturalmente, nas mãos do menino, a folha foi dobrada, desdobrada, vincada, dobrada de novo e de novo. Virou um barquinho de papel. Um barquinho de papel frágil e trêmulo, mas que importava? Um barquinho de papel colorido, com uma proa de vermelhos e amarelos e a foto do artista ermitão lá no topo.
O ar se aquietou por um instante, como se carregado por aquela atmosfera solene das grandes inaugurações. Enquanto isso, um gesto fluido e espontâneo do menino lançou delicadamente o barquinho n’água. O barquinho pairou, parecia esperar fogos de artifício ou salvas de canhões que não vieram (até mesmo o dragão de são Jorge repousava, lembrem-se). Então, com o retorno da brisa, o azul do lago se ondulou. O barquinho oscilou, enfunaram-se suas velas imaginárias. E, num caminho de ziguezague, tomou lentamente o rumo da aventura.
O menino olhava para o lago e para o barquinho que se movia. Viajava. Era melhor do que sonhar. Então, antes de se enfadar, o menino se levantou mais uma vez e se afastou do lago: ouvira o ressonar do dragão a lembrá-lo de que estava na hora de vestir sua roupa de astronauta para explorar a Lua.
Quando o pai do menino acordou, o Sol já se abaixava querendo tocar a água. Esfregando os olhos sonolentos, não viu a Lua que surgia do lado oposto nem o menino que brincava. Seguiu os passos do jornal aberto, notícias cinzas espalhadas sobre a grama. E viu, afastando-se em ziguezague no lago, um barquinho seguro de si que aguardava o Sol para deitá-lo em seu colo, enquanto coloria de amarelos e vermelhos a água que ficava para trás.

texto do Edu, barquinho da Dani e inspiração de ambos...